quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Homenagens à Rainha do Mar

Foto: Arquivo/ Folha dos Lagos

Felipe Rangel
Folha dos Lagos


As calmas águas de Cabo Frio vão servir, hoje, como caminhos para levar oferendas à rainha de todos os mares: Nossa Senhora dos Navegantes, para os católicos, e Yemanjá, para os candom-blecistas e umbandistas. Seguindo a tradição que mobiliza pessoas do mundo inteiro, fiéis e devotos da mãe protetora dos pescadores soltarão barcos com a imagem de Yemanjá na Praia do Forte, no fim da tarde.

Para celebrar o dia dela, a Ong Instituto Cultural Afro-Brasileiro Olufon Deyi (Icabo) e a Superintendência de Promoção da Igualdade Racial (Supir), da Prefeitura de Cabo Frio, organizaram um dia inteiro de comemorações no local conhecido como Canto do Forte (próximo ao Forte São Matheus). As celebrações começam às 6h, com queima de fogos, e vão até a 0h, com rica pro-gramação cultural durante todo o dia.
Às 8h, acontece uma missa em homenagem à Nossa Senhora dos Navegantes. Das 9h às 16h, os de-votos podem aproveitar a programação cultural, com dança afro, capoeira, maculelê, afoxé, samba de roda, jongo, folia de reis, dentre outras tradições da cultura africana. Além disso, estarão instaladas no local barracas com comida, bebida e artesanato típicos.
Às 16h, começa a Louvação a Umbanda. Já às 17h, os devotos partem em procissão marítima pelo Canal do Itajuru, para uma hora depois realizarem a entrega das oferendas em alto mar, soltando na água os tradicionais barquinhos enfeitados para a mãe de todos os navegantes.
A programação tem o último período à noite, das 19h a 0h, com apresentação de diversos grupos de pagode, samba de roda, escolas de samba, dança afro e abadá capoeira.

Uma tradição que 
veio com as caravelas

Em um planeta onde os oceanos são predominantes em relação à terra, milhões, talvez bilhões de pequenas embarcações já foram atiradas ao mar com des-tino incerto, mas com um destinatário em comum. Não se sabe onde esses barcos foram parar, mas cada um deles carregava oferendas, perfumes, presentes, e, é claro, muita fé. Quase sempre, como manda a tradição, carregavam também uma imagem: de braços abertos, com um manto azul caído sobre o corpo, Yemanjá bem que podia ser a comandante de cada um desses barcos, não fosse ela a destinatária.
A tradição teve início no século XV, em um panorama religioso amplamente dominado pelo cato-licismo e restritivo a outras religiões, especialmente as de origem afro, como o candomblé e a um-banda. Yemanjá ficou conhecida no catolicismo como Nossa Senhora dos Navegantes e era vista como a padroeira dos que se aventuravam em mares distantes, em uma época onde longas viagem a bordo de caravelas eram rotina para bravos marinheiros. Para pedir proteção na navegação, muitos desses aventureiros carregavam a bordo uma imagem da santa.
E essa tradição descobriu o Brasil. Literalmente. Quando pisou em solo brasileiro pela primeira vez, Pedro Álvares Cabral trazia na caravela uma imagem de Nossa Senhora da Boa Esperança, outro nome dado à Nossa Senhora dos Navegantes. A imagem ficou no país até o século XVII e foi levada de volta para Portugal, onde está até hoje, mas a relação de fé e devoção do povo brasileiro e da rainha de todos os mares permanece firme, agora estreitada com os traços africanos.
O primeiro passo para celebrar a Nossa Senhora dos Navegantes foi levar a imagem dela do mar para a terra, como fez Cabral. No Brasil, séculos depois, a tradição se perpetua fazendo o caminho inverso: a maior manifestação de devoção à rainha dos mares são os barquinhos que partem das mãos dos fieis e vencem o alto mar para um endereço desconhecido, até chegarem a Yemanjá.
E essa tradição começou na Bahia de Todos os Santos, em uma vila de pescadores. Preocupados com com a pescaria em uma determinada época do ano, os homens da vila se dirigiram a uma mãe de santo perguntando o que deveriam fazer para alcançar melhor sorte no mar. A mãe de santo então disse aos pescadores que enviassem oferendas àquela que seria a mãe deles e a que os protege enquanto estão no mar – Yemanjá significa “Mãe cujos filhos são peixes” no dialeto ioru-ba. De imediato os pescadores atenderam à orientação e soltaram os barquinhos em alto mar, obtendo assim a recompensa prometida. Desde então, as oferendas à Yemanjá viraram tradição, tanto no Réveillon, quanto no dia dela, 2 de fevereiro.

Em Cabo Frio, 
uma tradição recente

Apesar de ser uma tradição se-cular no Brasil, a celebração dos barquinhos só passou a ser organizada em Cabo Frio em 2007. Quem trouxe a festa de Yemanjá para a cidade foi um baiano conhecido como Sérgio do Afoxé, com o auxílio de Geralda de Yemanjá, yalorisá do Ilê Asé Ya Omin Ogun-Té, que até hoje mantém um terreiro de umbanda na cidade, no bairro Boca do Mato.
Segundo ela, Cabo Frio já aderiu a tradição de soltar barquinhos no dia dedicado à Yemanjá – antes, essa prática era comum apenas no Réveillon.
– Foi uma tradição que começou em 2007 com o Sérgio da Bahia, do Afoxé. Ele veio para Cabo Frio e nos contou sobre as oferen-das no dia de Yemanjá, e como ele estava utilizando o meu barracão, acabei ajudando ele na organização da primeira celebração de Yemanjá no dia dela. Agora se tornou uma tradição e todo ano os devotos soltam barquinhos para o mar – contou a mãe de santo.
Para o pai de santo Sandro de Ogum, a celebração tem tudo a ver com Cabo Frio.
– A celebração de Yemanjá tem influência da pescaria aqui no Brasil e isso tem tudo a ver com a Região dos Lagos e com Cabo Frio. É uma comemoração importantíssima para a religião do candomblé, pois Yemanjá é a mãe de todos os orixás, é a senhora das cabeças – explicou.
E onde encontrar as tais oferen-das para Yemanjá? Antes uma tradição rústica, agora a celebração dos barquinhos conta até com estrutura industrial especializada. Em lojas voltadas para a um-banda e o candomblé, são encontrados kits com as oferendas preferidas de Yemanjá: sabonetes, perfume, pó de arroz, pente e es-pelho. No Palácio da Umbanda, no centro de Cabo Frio, esse kit pode ser comprado por R$ 5.
Antes feitos artesanalmente, hoje os barcos também podem ser encontrados em estabelecimentos religiosos. Na mesma loja, as pequenas embarcações, talhadas em madeira, variam de R$ 20 a R$ 144, dependendo do tamanho – eles vão de 30 cm a 1,5 m. E a procura é grande, segundo a vendedora Maica Daudt.
– Muita gente entrega as ofe-rendas no Réveillon, mas a grande maioria dos umbandistas tem preferido o dia de Yemanjá, então a procura fica grande nas vésperas. Além dos barquinhos e das oferendas, eles procuram velas, flores brancas, banhos líquidos, taças decoradas e imagens dela – contou a vendedora.
Seja com a simplicidade de um barco artesanal ou com aquela ajudinha da indústria especializada, a tradição dos barquinhos para Yemanjá se consolida cada vez mais não só em Cabo Frio, mas no Brasil inteiro. As pequenas embarcações que ganham o mar carregam consigo pedidos, agradecimentos e devoção. O que fica em quem lança os barcos, é a fé. Fé que nunca abandonou os nave-gantes, que seja por aventura, por profissão ou por prazer, cruzam os mares sem saber o que os espera, mas com a certeza de que serão protegidos. E assim, calmos como o seguir de um rio, eles seguem a música que diz “Aponta para a fé e rema”. E que Yemanjá os proteja...